Subtítulo: A história de uma estreia em trails de grande distância, que se tivesse sido melhor estragava.
Os primeiros quilómetros
O percurso começa sempre a descer. Eu começo sempre a travar. Acho que nunca fiz nenhuma prova em que fosse seguida tão de perto pelo carro-vassoura. Tenho medo de me deixar entusiasmar e pagar com juros de empeno mais tarde. Mesmo assim, os primeiros três quilómetros, distância que levou até chegarmos junto ao caudal do rio, são feitos a uma velocidade "louca" para trilhos e, sobretudo, para trilhos em que vou correr pela primeira vez mais de 30km. Não deveria estar a fazer quilómetros na casa dos 5minutos, mesmo sendo a descer. Também não deveria estar sempre a olhar para o relógio, mas não consegui controlar (lá mais para a frente da prova esta mania passa-me).
O que vale é que, para compensar, o km4 vai demorar mais que os três primeiros todos juntos. Ai estavas preocupada por estares a começar demasiado rápido? Toma lá um travão de 26min/km!
E outro de 16min/km.
Estes engarrafamentos são habituais em provas de trail, sobretudo mais cá para a cauda do pelotão, ou a "liga dos últimos", como eu a chamo, na qual me incluo e designo com carinho. Geralmente são provocados pela passagem em algum local mais perigoso, neste caso tratava-se da primeira subida com auxílio de corda, das várias que encontraremos ao longo do percurso. Estas pausas só são chatas porque, neste caso, ainda mal tendo aquecido, fomos obrigados a parar. De resto, é sempre tempo útil para tirar fotografias e pôr a conversa em dia. Se há prova em que o tempo de introspecção em natureza é pontuado harmoniosamente por momentos de companheirismo, é uma prova de trilhos.

Ainda não disse, mas nesta minha estreia contei com a companhia do meu amigo Artur. O Artur é uma pessoa que poderia perfeitamente ter despachado esta prova na casa das 5 horas, logo, estão a ver a paciência que foi exigida da sua parte e a pressão (auto-imposta) que existia da minha. Não quero ser spoiler, mas demorei um
bocadiiiinho mais do que 5horas a fazer a prova...
O carrossel
As fotos seguintes resumem bem o que foi esta primeira parte da prova. Ora estávamos a descer para o rio, ora estávamos a subir do rio.
Gostei especialmente destes troços de escalada assistida por corda. Ao bom espírito da tropa, nenhum homem era deixado para trás. Quem acabava de subir ficava para estender a mão ao seguinte, enquanto cá em baixo alguém ficava a estabilizar a corda.
É certo que é um método em que as pessoas acabam por perder muito tempo, mas é uma entreajuda espectacular. (Caso se estejam a questionar: não, não fiquei a segurar a corda para ninguém, mal seria da integridade física dessa pessoa! Mas dei apoio moral... :))
Basicamente, posso dizer que até cerca do km20 tudo correu bem. A paisagem era bonita, os carreiros eram caricatos, mas começava a perguntar-me até quando iria aguentar esta versão "rolante". Entretanto, ia aproveitando o momento.
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Passámos por vários trilhos, todos devidamente identificados. |
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Por enquanto ainda dava para evitar molhar os pés... |
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Paisagem com toques de sudeste asiático, em Almourol. |
Até que, à passagem do terceiro abastecimento....
Os quilómetros negros
Depois do abastecimento acima, caí a pique. Eu não sou daquele tipo de corredores que começam a ficar sem energia, aos poucos, que se dão conta de "
epá, estou a ficar cansadito..." Não. Eu estou muito bem no topo do mundo e depois, de repente, quando me apercebo, já caí dentro de um poço negro e profundo de cansaço e lástima. Foi o que aconteceu.
Pouco depois do abastecimento tive de parar para apertar os atacadores e, quando levantei a cabeça, tive uma ligeira quebra de tensão. Fiquei a ver estrelinhas durante um bocado, e não sei se terá sido isso a despoletar o que se seguiu.
Sei que o facto de o sol estar a pique (já passava da uma da tarde) e de se seguir uma recta interminável junto aos carris, também não ajudou.
Não era que me sentisse farta, longe disso, nem que duvidasse que seria capaz de terminar a prova, mas comecei a achar que se não saísse rapidamente deste buraco, ainda com metade da prova por fazer, ia ser uma experiência muito sofrível.
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Um cenário lindo que nem apreciei com a atenção devida. |
Foram tentados vários métodos de socorro. Tentaram distrair-me com karaokes improvisados, com conversas sobre temas de meu interesse, críticas a filmes, referências à série Game of Thrones em geral e à personagem Jon Snow em particular... Mas mesmo assim não resultou. Quando estou a lutar contra os meus demónios internos agradeço toda a distracção possível, mas o máximo que vão ouvir da minha parte são resmungos e grunhidos indistintos.
Nesta parte só abria praticamente a boca para dizer: "SUBIDA"! SUBIDA era o meu código para "vamos parar de correr que estou cansada". Como o próprio nome indica, só deveria ser utilizado efectivamente em subidas de dificuldade média/alta, que sentisse necessidade de fazer a andar. No entanto, usei e abusei deste código, inclusive para "subidas" com d+ de 20
centímetros e não tenho vergonha de o admitir. Recordo-vos que estava
no fundo do poço, tenho desculpa. :)
O abastecimento do km28 chegou na hora certa. Permitiu fazer uma pequena pausa à sombra e repetir o menu: 1 bocado de banana + 1 (ou 2 ou 3) gomos de laraja + batatas fritas de pacote. A verdade é que nunca tenho muita fome durante as provas e quase que tenho de me obrigar a ingerir qualquer coisa. Estes alimentos, nesta exacta sequência, eram o que entrava.
Neste local em particular houve vários atletas a desistir. Muitos não estavam à espera da alteração do percurso relativamente a anos anteriores e tinham gasto demasiado energia antes de tempo (nas suas palavras). Acho que o facto de eu achar que, por comparação, não me sentia assim tão mal (desistir nunca me passou pela cabeça) deu-me alguma moral, porque daí para a frente as coisas vão ser sempre a melhorar.
A ressureição
O ponto de viragem deu-se exactamente ao km30. Não me perguntem porquê mas, mesmo tendo começado esta prova determinada a concluí-la e com a ideia de que só desistiria se tivesse algum problema grave, o km30 foi o momento em que tive
a certeza de que ia conseguir terminar. Foi a 12km do final que ganhei uma confiança inabalável, vinda não sei de onde, e
soube que os 42km de Almourol seriam meus. É estranho, já que nunca tinha feito mais do que a distância de 30km e dali para a frente seria terreno desconhecido... Mas a mente tinha alcançado a meta e agora era só o corpo ir atrás. Dali para a frente, como que para compensar-me dos quilómetros de purgatório, vou experienciar uma resistência fantástica. Sentia-me bem e constantemente surpreendida por isso.
Tanto nas partes mais técnicas...
Como nas partes mais rolantes...
Vemos atletas que eram só formiguinhas distantes a ficarem cada vez mais perto, e a prova deixa de ser tão solitária. Estava toda contente por conseguir recuperar lugares na classificação, nem que fosse da posição 373º para o 354º, não interessava! Sentia-me inebriada por esta experiência nova de confiança imparável, e no meu campeonato pessoal já era vencedora.
Estes últimos quilómetros vão também distinguir-se pelos vários cursos de água que vamos ter de atravessar, nomeadamente em alguns túneis como este:
E outros como este:
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Sim, o caminho é por ali! Adentro! |
Eu sei o que o túnel acima faz lembrar... Mas a sério que não foi assim tão mau. No entanto, o senhor que disse que a água ali nos dava pelos joelhos devia ter as pernas muito altas, porque molhei as pernas
bem acima dos joelhos, e fiquemo-nos por aí. :)
Eu gosto bastante destas aventuras aquáticas, apesar delas também significarem muita lama, o que atrasou a progressão nos quilómetros finais. Até ao km37 formámos um pequeno grupo de ritmo consistente com outras duas raparigas e um homem, mas houve ali uma altura em que comecei a sentir que algo não estava bem com a minha unha do pé esquerdo (update daqui a uns dias) e, além disso, as descidas já começavam a custar-me mais do que as subidas, porque sentia as plantas dos pés a queimar contra o terreno pedregoso. Então o que é que eu fiz, abrandei? Claro que não! Se estava com dores, tinha de terminar a prova mais depressa, pois está claro!
A raiva como impulsionadora final
Já não me lembro, mas acho que de repente, do nada, desabafei qualquer coisa em voz alta como: "estou farta, fartaaaaa destas descidas em pedra, raios parta mais aos pés!" (ou algo eloquente do género) e larguei a correr acelerada por ali abaixo. De certeza que as pessoas que assistiram a isto devem ter pensado que tinha ficado maluquinha - "olha, agora é que esta pensa que vai ganhar a prova..." - mas nesta fase estava mais do que decidida a terminar. Sentia-me bem a nível de respiração e pernas, mas os pés já começavam a incomodar-me.
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Mais uma fotografia de uma paisagem feia, feia... :) |
No último abastecimento, quando o gps já contava mais de 40km, foi-nos indicado que ainda faltariam cerca de 4 km para o final. Realmente, a indicação era de que o último abastecimento seria aos 38km, mas o meu gps já contava mais de 40km, o do Artur também e, pelos vistos, o de várias pessoas que se queixaram também.
Quando ao toque dos 42km estava ainda rodeada de árvores num single-track, sem avistar sinais de civilização, a raiva continuou a motivar-me. Os pés queixavam-se, a mochila já estava a criar um raspão na zona do pescoço, mas nem que tivesse de fazer 44 ou 45km, tinha de concluir esta Maratona! Sentia-me picada pelas passagens de lama, que testavam o meu equílibrio. Sentia-me desafiada pelas últimas subidas, como se quisessem verificar se ainda havia força disponível nas minhas coxas. Sentia-me gozada pela organização, que nos fez atravessar no último quilómetro o Parque do Bonito, realmente de fazer jus ao nome, quando já não queria saber e só via a meta à frente.
A redenção
Depois, senti-me apoiada naqueles últimos 600 metros, quando vi o Pavilhão Municipal (aaaleluia!) e sabia que, estivesse ele 2km mais à frente, não teria parado de correr na mesma. Levou 8h, poderia ter levado mais. Foram 44km, mas podiam ter sido 48km. Naquele dia, ninguém me tirava a Maratona.
Quando entrei no pavilhão, fui recebida com aplausos como se fosse a
primeira. Inclusive, tive um senhor sorridente e simpático a colocar-me a medalha ao peito,
qual medalhada olímpica. A organização esteve impecável ao longo de toda
a prova (até com o bónus de 2km grátis que ofereceu aos atletas ihih),
mas este miminho final fez a diferença em relação a muitas. Aqui, tenho a
certeza de que até ao último atleta houve gente a apoiar.
E foi assim, a história dos meus primeiros 42km (+2) em trilhos. Não foi perfeito, mas foi fantástico. Tenho a noção de que fui uma sortuda por ter tido esta primeira experiência tão positiva em grandes distâncias. Isso até me deixa com sentimentos dúbios em relação à próxima (porque CLARO que vai haver próxima!)... Qual é a probabilidade de fazer uma outra provas destas e terminar cansada, óbvio, mas praticamente sem dores, de respiração normalizada, e ainda a sentir-me com energia de reserva? Muito baixas!
Por agora, vou apenas aproveitar a nuvem de endorfinas na qual me encontro a flutuar desde domingo passado. Sim, ainda dura! Agora consigo perceber o porquê do pessoal ficar viciado nisto das longas distâncias.
Obrigada pelo apoio de quem esteve lá e de quem mandou uma energia extra. Se pudesse, partilhava as endorfinas com vocês. Espero que um bocadinho desta felicidade também aí chegue.
Almourol 2015, vemo-nos por lá?