"O cerco do exército português à fortaleza de Óbidos, dominada pelos mouros, durava já há cerca de dois meses. Um dia, D. Afonso Henriques e Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, decidiram que o ataque seria realizado na madrugada do dia seguinte. Dormia já o Lidador, quando foi acordado por uma voz de mulher que lhe pedia para ser conduzida à tenda do rei de Portugal, pois tinha algo de importante a comunicar-lhe. A jovem vivia no castelo dos mouros mas não sabia se era moura porque nunca tinha conhecido os seus pais. Junto do rei, a jovem revelou o seu sonho que se repetia há três noites. No sonho, aparecia-lhe um homem novo e de olhar doce que a incumbia de transmitir uma mensagem para o rei de Portugal: o rei deveria reunir os soldados e liderá-los num ataque surpresa na parte fronteiriça do castelo, enquanto o Lidador se deveria dirigir com dez homens às traseiras onde a jovem donzela abriria uma porta para os deixar passar. O homem de olhar doce prometia Óbidos aos cristãos e a salvação à jovem donzela. Apesar da hesitação do Lidador, D. Afonso Henriques decidiu cumprir o que a jovem lhe contou. Na manhã seguinte, Óbidos foi conquistada conforme o sonho da misteriosa jovem que nunca mais foi vista. A porta que franqueou a entrada dos cristãos ficou para sempre conhecida como a Porta da Traição."
Acho que começará a ser uma tradição dar as boas-vindas ao
mês de Agosto com uma passagem pelo Castelo de Óbidos. Durante a tarde
assiste-se ao desfile medieval proporcionado pela feira a decorrer no interior
das muralhas e depois termina-se a noite/começa-se o dia com uma corrida
nocturna. Duas das minhas coisas favoritas concentradas num tempo e espaço tão
limitados é de aproveitar. Vamos todos colaborar e não esgotem as inscrições
TNLO 2015 antes de eu me inscrever, está bem? É que a correria para as
inscrições nesta prova é mais renhida do que a competição no trail em si. E,
quem participa uma vez, percebe o porquê.
Mas este ano reservei novamente o meu lugar e lá estava,
sábado dia 2, para fazer parte do pelotão de pirilampos que invade esta pequena
vila ao anoitecer.
Com sabem, devido àquela “pequena”
prova em que participei
duas semanas antes,
acovardei-me, precavi-me e optei por participar na
versão curta do TNLO, os 26km. Mas isso não significa que não tenha assistido e
ficado entusiasmada com a partida do UTNLO como se fosse a minha. A partida
simbólica no Campo da Bola e a descida pelas ruas até chegar à saída das
muralhas, onde é feita a partida real, é um toque característico, apesar de
este ano esta parte do percurso estar especialmente perigosa devido aos
chuviscos que foram caindo ao longo da tarde e tornaram a calçada escorregadia.
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Partida UTNLO |
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Aí vão eles! |
Depois de assistir à partida dos atletas da Ultra, dirigi-me
então novamente para o Campo da Bola, onde me encontrei com os amigos e colegas
de equipa, nomeadamente a Isa e o Vitor, que também iriam participar nesta
prova. A ideia era manter-me com eles até ao final, porque tinha o pânico
secreto de poder perder-me e ficar sozinha, à noite, com um frontal fraquinho e
alimentado a pilhas dos chineses, no meio do mato. Mas já vamos ver como isso
correu. :)
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Tudo atento ao briefing. |
Assim, às 22h (este ano a partida foi adiada 15 minutos),
damos início à nossa corrida. Uma prova de que estou a ficar mais rápida: o ano
anterior, quando cheguei à partida oficial, já tinham dado o arranque. Este ano
cheguei lá e ainda ficámos à espera que fosse dada a partida (ou isso ou este
ano esperaram mais tempo pelos atletas, mas vamos pela primeira hipótese, a de
que estou a ficar mais rápida.)
Houve algumas alterações de percurso, nomeadamente os
primeiros quilómetros, que, se não me engano, fez com que percorrêssemos mais
asfalto pelas ruelas da vila. Acaba por ser engraçado, porque apanhamos pessoas
a dar o seu passeio digestivo, quem sabe momentos antes de se irem deitar, e
nós ali nos passos iniciais de uma epopeia nocturna.
Primeiras tentativas de fotos. Conseguem ver quem é?
Olhem novamente com mais atenção. Agora já conseguem?
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Claríssimo, certo?! ;) |
Tive de desistir das fotos. Acompanhem-me no restante relato às escuras.
Por volta dos dois ou três quilómetros começam as primeiras
filas, originadas pelos habituais obstáculos: subidas e/ou descidas íngremes ou
algum buraco a meio do caminho. Mas não é preciso tanto. No escuro, as pedras e
raízes causadoras de 90% das quedas em trail tornam-se ainda mais desafiantes e
exigem um nível de concentração ainda maior. Orientar foco para a frente para ver
os ramos, orientar foco para baixo para ver o chão e, ao mesmo tempo, não perder
de vista os quadradinhos reflectores que indicam o caminho.
Nesta altura o pelotão ainda ia muito compacto e eu ia
olhando para trás para me certificar de que a Isa e o Vitor ainda estavam ali.
Mas sabem o que é tentar reconhecer uma cara no meio de dezenas de focos a
apontar para os vossos olhos? Pois… Decidi continuar a avançar, na ideia de que
quando o pessoal começasse a alastrar ia ser mais fácil encontrá-los. A posteriori é bastante claro que esta
decisão não augurava nada de bom, mas… Já vamos ver como isso correu (II). :)
Sigo então, sempre a tentar manter-me junto a alguém cujo
frontal se assemelhasse a uns médios, para ver bem o caminho, e durante um
tempo segui atrás de um casal que ia ao meu ritmo. É mais fácil guiarmo-nos
podendo ver onde as pessoas da frente metem os pés e assim, se a
pessoa da frente tropeçar ou cair, já sabemos que não queremos ir por ali!
Ihih. Além disso, o rapaz era um excelente co-piloto. Sempre a dar indicações
em voz alta, como: “Buraco”, “Pedra”, “Ramo”, “Cabeça”. Sucinto, mas esclarecedor.
E assim aproveitei estes comandos alheios até chegarmos a um novo
engarrafamento, o maior de toda a prova, numa subida por trilhos estreitos. A
fila era tão compacta que eu só pensava que se algum dos que ia acima caísse para
trás íamos todos por ali a baixo efeito dominó. Apesar de algumas ameaças não
houve nenhum incidente e, uns 13 minutos depois, estava a subida feita.
Pouco depois do engarrafamento acabei por perder o
casal de vista, por isso, a bem da minha integridade física, tive de juntar-me
a um novo grupo de pirilampos, e segui os próximos quilómetros atrás de um
grupo bastante animado, que ao final de 2km já eram os meus novos melhores
amigos. Inclusive, mencionaram
uma prova na terra deles que calha em dia de Arga e não vou poder ir, mas que pode interessar a alguém por isso aí fica o link.
Não me lembro se foi por volta dos 12km que encontrei o, na
altura ainda aspirante a, Ultra
Pedro. Reparei que tinha alcançado alguns
atletas dos 50km e comecei a falar com eles sem os reconhecer. Já tentaram ver
a cara das pessoas, no meio do escuro, quando eles têm um frontal na testa? É
isso que acontece, não reconhecem as pessoas. Só olhando ligeiramente de lado,
para fugir do foco. Informação útil, tomem nota! ;)
Aproveitei para desejar-lhe
boa sorte e dizer-lhe que queria ler a história da conquista nos dias
seguintes.
Na altura já seguia sozinha, tendo deixado os anteriores
companheiros no abastecimento. Daqui para a frente serei sempre só eu e o meu
pirilampo, com a ocasional companhia durante alguns metros, de tempos a tempos.
Lembro-me de na zona da Lagoa achar que já estava a correr
muito. Muito, no sentido de as rectas nunca mais terminarem e não justificar
andar, apesar da areia que dificultava um bocado a passada. Não me lembro se
esta parte do percurso era igual à do ano passado. O ano passado parece-me que
nem dei pela Lagoa e desta vez lá estava ela, iluminada pelo céu nocturno. O
ano passado também não me lembro desta parte ter demorado tanto tempo e desta
vez nunca mais terminava. Olhava para a frente e via um pirilampo aqui e ali, a
deslocarem-se a diferentes ritmos. Alguns paravam ou reduziam a velocidade e eu
fazia por apanhá-los, numa forma de ajudar o tempo a passar.
Finalmente vejo ao
fundo o enorme foco de luz que sei tratar-se do último abastecimento (para os
26km). Este é capaz de ser um dos meus abastecimentos preferidos na história
dos trails. Está bem servido, com boa variedade de alimentos, bem iluminado, e
fica numa zona de merendas, com umas mesas para quem quiser sentar-se a
descansar. Sei também que a ilusão de ser “já ali” não passa disso, uma ilusão.
Nós não conseguimos ver, mas o caminho segue em curva e contracurva, e o
abastecimento ergue-se acima de uma pequena encosta, como um oásis inalcançável
de luz no meio da escuridão. Pelo menos é nisso que penso, enquanto, naquele momento, corro
sozinha ao seu encontro.
Passando o abastecimento, mais de 17km estão feitos e sei
que, a não ser que algo de muito mau aconteça,
vou conseguir bater a marca das 4horas. -> Ahahah! Somos tão inocentes às vezes... Já devia saber que não
se pode fazer contas numa prova de trail, quem manda é a natureza. Neste caso,
a natureza impiedosa da escuridão.
Por acaso o meu frontal fraquinho alimentado a pilhas dos
chineses até se estava a aguentar bem. Tinha era de alternar entre apontar o
foco mais para baixo, em zonas de piso mais irregular, para poder ver melhor
onde punha os pés e entre apontar o foco para a frente, para poder reflectir
nos pequenos quadradinhos sinalizadores que indicavam o percurso. Lembro-me exactamente
quando dei por falta desses quadradinhos, ia já com cerca de 23km de prova.

Páro e olho para os lados. Dois pirilampos que seguiam pouco atrás vendo a minha hesitação, dizem: - “Segue, é por aqui”. E eu, que não estava a ver nenhum quadradinho, confiei. CONFIEI. Atentem bem em como não se pode confiar em ninguém (ihih). "Se calhar têm frontais mais potentes e estão a ver alguma sinalização da qual eu não dei conta” – pensei, dando o benefício da dúvida. No entanto, alguns metros à frente, continuando a não ver os reflectores, questiono: “Têm a certeza que o caminho é por aqui?” A resposta já vem mais longínqua e menos confiante: “Pois… Agora já não sei bem.” E pronto, começou a diversão.

Só através do mapa da minha prova é que depois consegui
reconstituir este belo momento, que teria sido uma boa altura para manter a
calma e a capacidade de raciocínio, mas que só veio comprovar que caso algum
dia me apanhe perdida no meio da selva à noite (nunca se sabe, pode acontecer…)
vou entrar em pânico e dar por mim já completamente SOZINHA, num trilho
qualquer, sem ver ninguém para trás nem para a frente, hesitante entre ficar
ali parada a ver se chega alguém (parada no meio do escuro a ouvir os “ruídos”
da noite… hmmm…) ou continuar a correr com risco de me afastar ainda mais do
percurso. Nenhuma das opções me parecia muito boa, mas entretanto também já não
tinha a certeza de estar a regressar no mesmo caminho que tinha feito anteriormente.
Sei que a certa altura comecei a ver novamente quadradinhos reflectores, mas dos
azuis (Ultra) e num sentido oposto ao qual seria de esperar. Decidi-me a
segui-los, pensando que, mal por mal, mesmo indo na direcção contrária,
acabaria por encontrar alguém. E foi isso que acabou por acontecer. Vi meia
dúzia de focos de luz a correrem na minha direcção, que descobri serem atletas
dos 26km que também andavam perdidos. Pelo menos já não estava sozinha. Um
deles liga para a Organização e foi engraçado as tentativas para explicar onde
estávamos. “Olhe, vejo umas árvores”… “E umas luzes ao fundo, de umas casas, à
direita”. Realmente não era uma tarefa fácil ajudarem-nos com indicações
remotas do percurso a seguir, com dados de localização tão específicos como
estes!
Depois de algumas tentativas e erros, tendo por base os quadradinhos
azuis, acabámos por encontrar outro grupo de “perdidos” (já devíamos ser cerca
de 15!), mas que felizmente estavam perdidos há menos tempo e tornou-se mais
fácil fazer a reconstituição do trajecto até ao local certo: uma infame curva à
direita, relativamente bem assinalada, poucos metros antes do local onde dei
pela primeira vez pela falta das marcações… Grrrr...
Ao menos fiquei a saber que o meu sentido de orientação é
bom, desconfiem é dos atletas que ultrapassam uns metros antes. :)
Daí para a frente o meu ânimo alterou por completo, era como
se a prova já estivesse acabada para mim e agora só queria cortar a meta. Não
gosto nada de fazer provas assim. Gosto de poder viver o momento, aproveitar o
quilómetro em que estou (ou queixar-me dele), mas agora já estava farta. Ia com
26km, ainda não conseguia ver as muralhas e já estava sem paciência para os
obstáculos do caminho, queria correr e terminar depressa. Mas ainda estava reservada
a surpresa da conquista do Castelo.
Para evitar a passagem no túnel de água do
ano passado,
desta vez tivemos de simular uma invasão nocturna e sorrateira aos mouros
sitiados, escalando o terreno em volta das muralhas. E que ágeis e fortes
tinham de ser aqueles soldados medievais, para subirem carregados de armaduras
e espadas. A minha mochila é uma pluma por comparação e eu já mal levanto os
pés. Tropeço e escorrego na lama, alastrada pelas centenas de pés dos soldados
que chegaram antes. "
Mas nunca mais chegamos??" E agora ainda as escadas (será
que na altura de D. Afonso Henriques já estaria assim esculpida na terra uma
escadaria tão conveniente?:)), que temos de subir numa última prova de
valentia, antes de começarmos a ouvir os incentivos e aplausos que nos vão
abrir a Porta da Traição.
Como o meu dorsal era dos 50km (alterei só o chip),
oiço ainda mais aplausos. Não só as pessoas acham que sou a primeira mulher da
Ultra, como seria uma atleta fantástica, a terminar os 50km em 4h e pouco. Abano
as mãos: “Não, não! Fiz só os 26km.” “Fiz só os 26km!”- repito eu. Ainda bem
que a luz do frontal e o escuro da noite ocultam a minha cara que deve estar a
ficar cada vez mais vermelha, e não era do cansaço.
Na altura fiquei contente por ter tomado a opção de alterar
a inscrição para os 26km. O cansaço de 15 dias antes ainda preso ao corpo, a
situação de me ter perdido à grande pela primeira vez, ainda por cima numa
prova nocturna, o desgaste mental que senti nos últimos dois ou três
quilómetros… Tudo me indicava que tinha sido a escolha correcta. Mas claro que
no dia seguinte já pensava diferente.
Que surpresas estariam reservadas nos quilómetros seguintes?
Uma pessoa fica viciada neste carrossel de emoções que são as provas longas de
trail, em que num momento estamos no topo do mundo e no outro maldizemos tudo e
todos e no outro somos felizes e no outro miseráveis. Ahhhh…
Fica para o ano. (Guardem uma inscrição para mim!)